A figura do lobisomem é um clássico tanto da ficção científica quanto da mitologia de diferentes culturas. Desde a antiguidade, o ser humano gerou figuras nas quais se misturavam características dos humanos e de diferentes animais, considerando-os desde deuses (como no antigo Egito) até produtos de uma maldição (na Idade Média ou mesmo na Grécia Antiga).
Também ao longo da história, muitas pessoas afirmaram ser ou se transformar em animais, algumas vivenciando isso com medo genuíno. Acredita-se que muitas dessas pessoas tenham sofrido um transtorno mental raro chamado licantropia clínicasobre o qual falaremos neste artigo.
Licantropia clínica: definição básica
A licantropia clínica ou licomania é considerada um transtorno mental caracterizado principalmente pela existência de a alucinação de ser ou se transformar em um animal. Esta alucinação é acompanhada pela percepção de supostas alterações corporais, com muitos pacientes notando como sua aparência física mudou ao longo do tempo.
O formato e o tamanho da boca ou dos dentes ou mesmo a sensação de que estavam encolhendo ou aumentando tem se manifestado em vários dos casos registrados. O período em que essas pessoas se consideram transformadas varia enormemente, podendo ir de um dia a quinze anos.
A licantropia clínica não é ou não precisa ser limitada apenas a uma crença, mas sim Eles também mantêm comportamentos típicos dos animais em que acreditam se transformar. Entre outros comportamentos, eles podem se mover como eles próprios (de quatro, por exemplo), gemer ou uivar, atacar ou até mesmo se alimentar de carne crua.
Um distúrbio estranho e pouco reconhecido
Estamos diante de um distúrbio estranho e pouco comum, do qual, de fato, entre 1850 e 2012, um dos autores que explorou o distúrbio, Blom, encontrou apenas treze casos documentados. Embora não seja um distúrbio reconhecido internacionalmente, pois há poucos casos e Seus sintomas são em grande parte atribuíveis a distúrbios como a esquizofrenia e alguns surtos psicóticos, alguns autores chegaram a gerar alguns critérios diagnósticos. Entre eles está o fato de o paciente afirmar ser um animal, afirmar em um momento de lucidez mental que às vezes se sente um animal e/ou realizar comportamentos tipicamente animais como os mencionados acima.
É importante ter em mente que embora a licantropia se refira tecnicamente aos lobos, as pessoas que sofrem com esta alteração podem acreditar que estão se transformando em animais muito diferentes deles. Foram detectados casos em que a pessoa acreditava estar se transformando em cavalos, porcos, gatos, pássaros, sapos ou até mesmo em insetos como vespas. Em alguns casos, foi até registrado que o paciente relata transformar-se progressivamente em diferentes criaturas até se tornar humano novamente.
Licantropia ao longo da história
Embora existam muito poucos casos modernos de licantropia clínica considerados registrados e que atendam aos critérios estipulados por alguns autores, a verdade é que a crença nos lobisomens é muito antiga e compartilhada por um grande número de culturas.
Deve-se levar em conta que a crença em elementos animistas e totêmicos era muito mais difundida do que hoje, o que explica porque a maioria dos casos e mitos remontam à antiguidade. Mas Nem sempre foi dada uma explicação espiritual para este fenômeno. Na verdade, há registros que indicavam já na época bizantina que havia algum tipo de alteração mental por trás de alguns deles.
Durante a Idade Média, porém, muitos casos de pessoas que se consideravam ou outras pessoas consideradas lobisomens foram perseguidas e queimadas, em muitos casos consideradas exemplos de possessão demoníaca. Apesar disso, mesmo nesta altura alguns alegados casos foram tratados clinicamente (embora com pouco sucesso). Provavelmente o alto grau de crença em elementos sobrenaturais facilitou a expansão do mito do lobisomem e possivelmente isso pode ter influenciado o surgimento de um maior número de casos.
No entanto, os avanços científicos e o declínio progressivo das crenças em relação à magia e aos espíritos tornaram cada vez menos comum a crença na possibilidade de ser possuído e/ou poder transmutar-se em animal. Os casos de licantropia vêm diminuindo ao longo dos anos, provavelmente por esse motivo.
As causas desta alteração mental
A licantropia clínica é uma doença muito rara, com poucos casos encontrados em todo o mundo. É por isso que A investigação deste impacto é mínimanão existindo teorias verdadeiramente comprovadas sobre os fatores que podem causá-lo.
No entanto, a presença de lesões neurológicas e comprometimento cognitivo associados à evolução de diferentes doenças (incluindo demência) pode ser uma das possíveis causas: embora o número de casos conhecidos de licantropia clínica seja pequeno, em dois deles alguns pesquisadores foram capaz de obter imagens de seu cérebro e registros de sua função cerebral.
As gravações cerebrais desses dois sujeitos parecem indicar que nos momentos em que eles acreditam estar se transformando, ocorre um padrão anormal no funcionamento do cérebro. Em relação às informações obtidas pela neuroimagem, observou-se a presença de alterações nas regiões do cérebro que processam a propriocepção e percepção sensorial, com alteração do córtex somatossensorial.
Outros que diversos autores têm sustentado ao longo da história afirmam que esta alteração pode ser devida a algum tipo de resquício da evolução sociocultural como espécie, sendo comum nas culturas antigas imitar o lobo ou outros animais com o propósito de obter as características associadas ( força, velocidade, ferocidade) para que beneficiem a nossa sobrevivência. Aqueles que têm esta alucinação podem estar inconscientemente procurando adquirir as qualidades dos animais com os quais alucinam, como forma de lidar com situações de frustração ou estresse.
A psicanálise também explorou a visão da transformação como o ato de nos deixarmos ser o que somos, sendo a referida alucinação uma forma de evitar a culpa ou de lidar com conflitos. Também poderia surgir como uma maximização mental das mudanças corporais que experimentamos ao longo do nosso desenvolvimento evolutivo.
Distúrbios aos quais está associado
Embora a licantropia clínica ou licantropia apresente características especiais em relação a outros distúrbios (como o envolvimento das áreas cerebrais que regulam a propriocepção), É possível considerá-lo como parte ou sintoma de outros transtornos mentais e neurológicos.
O distúrbio ao qual tem sido mais frequentemente associado é a presença de esquizofrenia, embora as alucinações neste distúrbio sejam geralmente auditivas e não tão cinestésicas e hápticas como na licantropia. Outra condição à qual está associado é o transtorno delirante crônico. Em geral, é considerado um transtorno do tipo psicótico. Além disso, tem sido associada à vivência de episódios maníacos, nos quais podem surgir diversos tipos de alucinações.