Opinião | Aprendendo através do amor (ou sua ausência)

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Em artigos anteriores falei sobre a autoeducação radical de pessoas que vêm ao mundo em situações de extrema dificuldade e que desde o nascimento têm que aprender a sobreviver. Os desafios que enfrentam, eu disse, são como os do ratinho da fábula, que caiu num balde de leite e, desesperado para sair, deu um pontapé, sem saber que o leite se transformaria em creme espesso e ele poderia se esforçar. em cima disso para se salvar. Como ele, há muitos que, em maior ou menor grau, encaram a vida como um desafio de sobrevivência, do qual também há muitos que saem triunfantes (onde “sair triunfante” não significa criar condições confortáveis, mas simplesmente, como eu digo, sobreviva). Aqueles que conseguem isso iniciam uma vida de duras lições, que outras pessoas mais privilegiadas enfrentarão muito mais tarde, mesmo quando adultos.

Todos sabemos que entre os privilégios que se pode ter ao nascer, o maior de todos é chegar a um contexto de amor. Ser amado é o recurso básico, ou seja, aquele que permitirá à pessoa aproveitar ao máximo tudo o que vem depois, inclusive a alimentação (os transtornos alimentares são gerados em contextos em que o alimento – leite materno ou qualquer outro – chega à criança. em meio à turbulência emocional).

Do meu ponto de vista – e neurocientistas como Antonio Damásio concordarão comigo – é aquele sentimento vital que, desde o momento em que viemos ao mundo, nos diz a nossa situação nele (situação favorável ou desfavorável) e nos impulsiona a enfrentá-lo. e abrir caminho através das trocas, desafios e perigos humanos: a frase de Paulo Freire “sempre aprendemos” deve ser interpretada literalmente e referir-se a uma sempre que começa com o nascimento.

Vale ressaltar que uma cosmologia e uma antropologia um pouco mais radicais nos permitem fantasiar que esse sentimento não está apenas na origem do que é humano, mas na origem de tudo o que existe. De acordo com tal visão, um tipo de essência que podemos chamar amor, Também estaria na origem do universo. A rejeição imediata que estas palavras podem provocar em alguns dos meus leitores deve ter em conta que não são arbitrariedades anticientíficas, mas antes fazem parte de reflexões antigas que nem todos os cientistas e filósofos atuais consideram ultrapassadas. Certamente a corrente fisicalista (que descarta precipitadamente tudo o que soa como “alma”) rirá dessas fantasias e ficará irritada por eu as expressar aqui de forma tão simples. Contudo, creio que este tipo de coisas devam ser ditas assim, sem ambiguidades nem complicações, entendendo que os argumentos que podem ser feitos em ambos os sentidos serão uma verdadeira perda de tempo e que a fé espiritual e a fé fisicalista se resolvem em não mais do que algumas palavras (“Deus existe” – uma frase angular na filosofia de Karl Jaspers, aliás – ou “Deus não existe”). Ir além disso é completamente sem sentido, a menos que alguém encontre grande satisfação em discutir inutilmente até que o outro fique surpreso. Penso que o máximo que se pode fazer é argumentar porque é que a nossa fé (teísta ou fisicalista, insisto) é legítima, no sentido de que não há raciocínio que a possa refutar. Mas provar que um está certo e o outro errado é uma questão estéril, como tudo sem fim (lamento que as minhas palavras não prestem homenagem ao recentemente falecido Daniel C. Dennet, um dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse Ateu ─como eles se autodenominam─, pensador incansável que dedicou boa parte de sua vida a raciocinar sobre por que para explicar este mundo nada é necessário além da física do inanimado).

Talvez menos estéril seria afirmar que o que todos procuramos todos os dias é aprender a orientar fecundamente o nosso sentimento vital, ou seja, direcioná-lo para o florescimento pessoal, social e ecossistêmico.

Há pessoas que têm a sorte de nascer em nichos onde o seu amor encontra um terreno mais ou menos fértil, ou seja, um contexto amoroso que os recebe de peito aberto e onde adquirem quase naturalmente competências de comunicação, solidariedade e auto-estima. preservação, e outras que parecem mágicas como a intuição, o humor e a criatividade poética. E digo que são adquiridos de forma “quase natural” porque, embora tenhamos a tendência de acreditar que a experiência amorosa é partilhada por mera contiguidade (como se segurar o bebé nos braços fosse “recebê-lo” plenamente), esse encontro na verdade ocorre por meio de sinais de comunicação que indicam ao outro os caminhos mais confiáveis ​​para a troca (são sinais que viajam nos dois sentidos mas que na mãe podem ser melhor estruturados e já funcionarem como verdadeiros). exemplos).

É assim que chegamos a uma concepção de educação em que mães/pais e filhas/filhos (e depois, por extensão, alunos e professores) se mostram, através de exemplos, os caminhos que podem nos levar ao florescimento; Ou seja, ensinamos uns aos outros as formas mais eficientes de perceber e compreender as circunstâncias, aproveitar as oportunidades e enfrentar desafios e perigos. É, como eu disse, um ensino mútuo (quem negará que as crianças também ensinam os pais e os alunos ensinam os professores?), em que aqueles de nós que estão no planeta há mais tempo têm, tal como os veteranos, mais vantagens do que aqueles que estão no planeta há mais tempo. que estão chegando.

Ora, esta bela perspectiva de troca amorosa não deve fazer-nos esquecer aqueles que, como o rato da fábula, nascem em condições de emergência. Não há nada pior (todos sabemos) do que um amor que está aí para ser dado de mãos cheias ─como aquele que o bebê traz consigo─, e que não é recebido. Não consigo pensar em nenhuma outra metáfora além do chute do rato para exemplificar como o bebê solitário protege seu amor vital e o irradia para ver se alguém retribui. Se o ambiente for propício, esse chute pode criar uma plataforma que salva sua vida. Se isso acontecer, a sua primeira lição terá sido, desde o início, não desistir mesmo nas condições mais difíceis. Contudo, a grande desvantagem que esta lição também traz consigo não é trivial: geralmente, um tal ser humano, quando crescer, será difícil de convencer da necessidade, por vezes vital, da derrota: peçamos-lhe que se abra à possibilidade de derrota, fracasso e tentará se livrar de nós, mesmo de forma agressiva e até com violência.

Certamente, este autodidatismo radical, que nos torna fortes mas desconfiados, não está inexoravelmente destinado a perpetuar-se e em algum momento pode abrir-se a formas de ensino/aprendizagem que incluam o amor aos outros e aos outros. Para que isso aconteça é necessário que grandes carências e grandes privilégios se compensem. Basta assistir ao filme magistral Pena de morte, com Sean Penn e Susan Sarandon, e dirigido por Tim Robbins, para descobrir como um sentimento vital que estava escondido nas sombras mais escuras aprende a ressurgir quando alguém estende os braços para guiá-lo e recebê-lo. Certamente, quem se coloca na posição de conselheiro/receptor de alguém em extrema necessidade deve ser forte; Mas se você puder mostrar a ele uma rota confiável, você será recompensado com um encontro vital que só pode ser chamado de Renascimento.

Nós – como professores e pais – não precisamos procurar encontros tão radicais (na verdade, uma boa opção substituta é assistir ao filme e nos emocionar: chama-se homem morto andando, em inglês). Porém, podemos ir até quem está próximo de nós (crianças, estudantes), que geralmente só precisam da nossa confiança para dar o que tanto reservam.

Gostaria de terminar este texto propondo uma ideia para outro filme, este de fantasia. É sobre um ser que se perde entre as sombras mais escuras e sobre uma heroína que, fortalecendo-se com os seus privilégios, desce até ele para lhe mostrar o caminho de volta. Ao retornar, aquele ser soterrado e sombrio mostra sua beleza oculta até emergir como um sol na superfície. Não me passou despercebido que o tema deste filme já é amplamente visto; Na verdade, acho que é o tema de todos os filmes, ainda mais, de todo drama humano (às vezes com as variantes de que o sol não nasce e que a heroína – ou heroína – escurece junto com ele). Não creio que acrescentaria nada se o herói e a heroína aparecessem não como indivíduos, mas como uma comunidade inteira: a questão também foi representada e está no centro das histórias, como começamos a aceitar nesta era pós-moderna: “Ninguém “Salve sozinho, ninguém salva ninguém: todos nos salvamos em comunidade”, como também disse Paulo Freire. Acrescentaria alguma coisa se para alcançar seu feito aquela comunidade tivesse primeiro que ir à escola (como propõe o grande pedagogo brasileiro)? Acho que não: tantas outras encenações que começam com a cidade se preparando para o feito já sentiram isso!

Para o meu roteiro, então, terei que me contentar com o arquétipo desgastado em que os seres humanos, precisando dar seu amor aos outros, um dia perdem a esperança e têm que aprender juntos a recuperá-la.

Você não acha estranho que, depois de tantos anos de esforço na solidão, nem nós, autodidatas, estejamos salvos de uma verdade tão banal?!

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