Opinião | Uma tribo educacional

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Como em todos os lugares, na comunidade onde moro tem havido alguns problemas devido às brincadeiras que as crianças fazem nas casas vizinhas. Bastaram pequenos esclarecimentos e as coisas foram resolvidas com cada família assumindo as suas responsabilidades.

Porém, atento – como costumo estar – ao que as coisas me fazem sentir (já disse noutra ocasião que mais do que um intelectual Eu sou um sentimental), e habituado a derivar as minhas reflexões e os meus escritos desses sentimentos, deparei-me neste caso (aparentemente inconsequente) com um pouco de dor derivada precisamente do facto de, em comunidades urbanas como aquela em que vivo (de pessoas que convivem forçosamente por acaso), cada família acaba por definir e assumir as suas próprias responsabilidades, sem envolver os outros, no entendimento comum de que a segmentação e mesmo o sigilo são o melhor caminho para a paz colectiva. Acho que existe até um ditado – imagino que seja bastante contemporâneo – que diz que o melhor vizinho é aquele que você não conhece.

Devo confessar que se essa pequena dor geralmente me assalta quando se trata de deixar de lado a convivência humana (já disse também que sou um comunitário não redimido), ela se acentua ainda mais quando a infância entra na equação. Embora os adultos possam ouvir muito sobre o ditado “Quanto mais convivo com humanos, mais amo meu cachorro”, as crianças não deveriam ter que enfrentar essa decepção, mas pelo contrário, deveriam ser capazes de viver em harmonia com todos os pessoas, adultos ao seu redor e, mais ainda, para se sentirem sempre compreendidos, protegidos e orientados nessa convivência.

Há um ditado que diz que para educar um menino ou uma menina é necessária uma tribo inteira. No nosso mundo atual, penso eu, o que no passado era uma tribo tornou-se uma humanidade completa: as redes sociais e todos os meios de comunicação fizeram com que as fronteiras da nossa comunidade se estendessem ao mundo inteiro. Isto permitiu-nos, por exemplo, conhecer os grandes avanços na educação na Finlândia, preocupar-nos com a educação e formação das crianças nas comunidades indígenas da América Latina, fazer doações para apoiar escolas africanas e ter acesso a outros fim de opções como esta, que infelizmente também nos tiram tempo para cuidar dos filhos dos vizinhos.

Quando nasci, minha família morava em um bairro de classe média da cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos, e pelo menos minha irmã mais velha guarda lembranças idílicas daqueles anos: entre elas, destaca-se um senso de comunidade em que o os pais de seus amigos serviam como uma espécie de pai para todo o grupo de crianças da vizinhança. O idílio incluía que assim os outros pais pudessem ficar tranquilos sabendo que sempre havia um adulto cuidando dos bebês. Essas lembranças de minha irmã mais velha são ecoadas pelas de uma prima nossa, cuja infância ocorreu dez ou doze anos depois, em Los Angeles, Califórnia. No bairro onde morava, ser mãe e pai também era uma posição democrática.

É importante ter em mente que estamos falando dos Estados Unidos. Quando o Estados Unidos da América Alcançaram a sua independência e aderiram livremente à tendência europeia de industrialização e ao novo expansionismo colonial (mais económico que militar, embora isso não tenha deixado de ocorrer), acrescentaram a esse grande feito um ingrediente que em breve os distinguiria das outras nações: o moralidade do desenvolvimento. Produza cada vez mais itens de bem-estardistribuindo-os por todo o mundo e dando à população a oportunidade de consumi-los, tornou-se uma espécie de felicidade que nenhum país são poderia rejeitar (diante de governos egoístas que negavam à sua população tamanha abundância de confortos, o sistema norte-americano reservou o produção de artigos chateados, do tipo bala e canhão). Obviamente, quanto mais ele impunha o seu modelo aos outros, mais próspera se tornava a população dos Estados Unidos: os americanos passaram a sentir que o ideal almejado estava presente neles e que o futuro já estava cumprido no seu país, por isso o outro os países tiveram que simplesmente seguir esse caminho já aberto. Pessoas trabalhadoras, ingénuas, de preferência pouco informadas sobre o que se passava no resto do mundo (há uma lenda de que o americano médio não sabia localizar o seu próprio país no mapa), não conseguiam compreender porque é que alguns se opunham a seguir o mesmo caminho de vida. Maria Antonieta devia estar de mau humor quando respondeu “Deixe-os comer bolos!” a quem falou da falta de pão para o povo. Por outro lado, muitas mães e pais americanos – residentes em belos bairros de classe média e média alta – teriam dito isso com total inocência, certos de que era a solução possível e correta.

Eu não quero tirar sarro. Não tenho muita experiência de convivência com americanos, mas uma vez participei, quase por acidente, de um evento com uma centena de famílias de classe média e média alta daquele país, e ─contra todos os meus preconceitos anti-ianques─ eles pareciam pessoas muito gentis, interessadas nos outros e nada pretensiosas. Eu entendi bem o que minha irmã e minha prima queriam dizer com suas memórias. A miopia que impede os habitantes dos Estados Unidos de verem além das suas fronteiras (cada vez mais invadidas, aliás), não tirou o antigo dom humano de criar uma tribo com todos aqueles com quem se sentem seguros.

Pelo menos é assim que era há alguns anos.

Ainda na década de 60, quando minha família morava naquelas terras, muitos jovens deixaram de acreditar no grande sonho americano. O movimento hippie É difícil de explicar (uma das manifestações mais espontâneas da história, conforme descrita pelo grande Arnold J. Toynbee). A desilusão de que depois da Segunda Guerra Mundial – que para eles tinha terminado apenas ontem – e apesar da crescente informação sobre o Holocausto, os Estados Unidos estavam agora a embarcar numa guerra feroz no Vietname, desempenhou o seu papel. Teve também algo a ver com o facto de os jovens – nos quais uma estrondo de admiração pelo Oriente (Rama, Krishna…) e por extensão por tudo o que é tribal (índios americanos, África…)─ terão sido mais sensíveis a tudo o que aconteceu naquela área. O facto é que se opuseram ao que muitos já consideravam uma invasão e juntamente com os seus protestos acabaram por se rebelar contra todo o modo de vida americano: deixaram os cabelos compridos, vestiram-se com total liberdade, até com trapos, tornaram moda o jeans operário, fizeram da paz e do amor a sua missão e a arte o seu veículo, a começar pela música, deixaram radicalmente o puritanismo para trás do sexual e começaram a viver coletivamente, empreendendo uma verdadeira cruzada de formação coletiva das infâncias.

Cada uma destas características pode ser julgada, e inúmeras experiências pessoais testemunhariam contra a sua natureza exemplar. No entanto, a efígie hippie Retorna sempre como o grande exemplo (a grande tentação!) de um possível modo de vida comunitário. Sem dúvida, o excesso de drogas e suas consequências – intoxicação, dependência, marketing, violência – foi um elemento importante para que os ideais não se concretizassem e se tornassem o seu oposto: abusos contra mulheres e crianças, fundamentalismo religioso, violência… Sem dúvida, porém, os erros cometidos por esses jovens (e a forma como o Estado atacou o movimento) não são motivo para não sonharmos pelo menos com uma educação que recupere os seus ideais: a diminuição da produtividade como sentido da vida , abordagem à natureza, auto-sustentabilidade, independência económica e ideológica, autodeterminação sexual, igualdade de género, desdém pelas aparências, inclusão, espiritualidade e, claro, criação de comunidades autogeridas e responsabilidade colectiva pelo bem-estar das raparigas e Rapazes.

Quem não gosta de tal modelo de vida, especialmente agora que a decomposição atingiu toda a sociedade, demonstrando que o fracasso não foi o desses ideais comunitários, mas, pelo contrário, o do sistema que os atacou? O hippies eles eram jovens. Hoje nada nos impede de seguir o seu exemplo com a maturidade que não conseguiram, mas que o mundo de hoje praticamente nos exige.

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Este artigo do Observatório do Instituto para o Futuro da Educação pode ser compartilhado sob os termos da licença CC BY-NC-SA 4.0

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